Tragédia de Ésquilo
Que dádiva tão preciosa concedera Prometeu aos homens que, incendiando o ódio de Zeus, acarretou terrível punição: acorrentá-lo num rochedo inacessível em lugar deserto nos confins do mundo: a longínqua Cítia?
Segundo a Teogonia[1] Zeus[2] ao derrotar seu pai, Crono, e tornar-se Deus Supremo do Universo, tencionava conservar a espécie humana em condições de irracionalidade ou mesmo destruí-la, criando outra.
Prometeu, da família dos Titãs, condoendo-se com o destino da humanidade, apoderou-se de uma faísca do fogo celeste, dotando o ser humano da razão e da faculdade de cultivar a inteligência, as ciências e as artes.[3]
Profundamente contrariado, Zeus o puniu.
Chamou o filho Hefesto, deus do fogo, artesão dos metais, reconhecido como habilidoso ferreiro, mandando-o fazer correntes indestrutíveis para atar Prometeu à rocha instransponível.
Continha assim o desobediente. Paralisando-o, impediria qualquer outra iniciativa do Titã que viesse a prejudicar o seu prestígio.
Descontente o filho, com a tarefa que lhe era imposta, reclama: afinal não queria ser o executor desta tortura, contra um Deus que era, também, parente seu.
Teve, porém, de fazê-lo. Não poderia desobedecer seu pai, Deus do Universo.
Prometeu foi acorrentado a um rochedo inacessível onde permaneceria pela eternidade.
Foi abandonado à sua terrível sorte: ficar imobilizado no tempo, onde um terrível pássaro passaria a comer seu fígado, pelos séculos que viessem.
Esta é a sorte de um ser imortal: tanto o bem quanto o mal que lhe são inflingidos, são eternos.
O Titã que num assombro de resistência nenhuma revolta manifestara, vendo-se naquela extrema solidão, passa a expor aos gritos, a sua dor e desespero.
As tragédias acontecem entre os mortais quando estes ultrapassam os seus limites. Há de estes viverem a justa medida, mantendo as leis da natureza, garantia da harmonia universal[4]. Na verdade, a tragédia se realiza no interior do ser humano com o despertar das paixões. Deve ser punida para que se realize a ordem cósmica.
Aqui, porém, a tragédia se realiza entre deuses que têm os mesmos sentimentos dos humanos, mas têm PODER. São imortais. Não morrem.
Há de se apontar nesta tragédia, a presença do Coro e a existência de figuras como o Poder e a Violência, esta, personagem muda.
Tem o Coro a função de advertência. Pede a prudência e não a entrega dos personagens às paixões que os levarão a uma queda livre que termina na ruína. Exprime opiniões sociais e os valores morais. Amplia as ações para além do conflito individual. Poder-se-ia dizer que o Coro expressa a consciência social do problema.
Quer dissuadir os personagens exaltados pelas paixões, sentimentos agressivos e cruéis. O perigo da exacerbação dos sentimentos e a falta de discernimento e ponderação fatalmente terminariam em tragédia.
Nesta tragédia, porém, O Coro, em face da desgraça que já aconteceu – o duro castigo imposto – passa a indagar e a querer entender a causa desta imposição.
A tragédia se inicia com a fala do Poder, referindo-se a Prometeu.
O Poder
“Ele roubou o fogo precioso, fator das criações do gênio, para transmiti-lo aos mortais! Terá, pois, que expiar este crime perante os deuses, para que aprenda a respeitar a potestade de Zeus, e a renunciar a seu amor pela humanidade.”
Hefesto
Para vós, Poder e Violência – a ordem de Zeus está cumprida; nada mais resta a fazer.
Referia-se ao cumprimento da ordem de seu pai.
O Coro
Dize, porém, sem nada ocultar, por que ofensa tua Zeus ordenou que sofresses tão bárbaro tratamento? Qual foi teu crime?
Prometeu
Aí de mim! Doloroso será, para mim, vô-lo contar, mas não menos doloroso silenciar; tudo agrava a minha angústia.
E, conta:
O ódio acabara de romper entre os deuses em dissídio. Uns queriam, expulsando Crono, dar o cetro a Zeus; outros, ao contrário, esforçam-se por afastá-lo do trono.
...
pareceu-me prudente, acompanhando minha mãe, Têmis, adotar o partido de Zeus.
...
Logo que se instalou no trono de seu pai, distribuindo por todos os deuses honras e recompensas, ele tratou de fortificar seu império. Quanto aos mortais, porém, não só lhes recusou qualquer de seus dons, mas pensou em aniquilá-los, criando em seu lugar uma nova raça.
Ninguém se opôs a tal projeto, exceto eu. Eu, tão somente, impedi que fossem povoar o Hades.[5]
Eis como estou porque me apiedei dos mortais.
O Coro
Que coração de granito, ou de ferro, deixará de partilhar teu sofrimento, ó Prometeu?
Conte também que deu aos homens a esperança de que participem do fogo celeste.
Prometeu
Além disso, consegui que eles participem do fogo celeste.
... Eu quis cometer o meu crime! eu o quis conscientemente, não o nego!
O Coro
Ô Prometeu! Como deploramos o teu infeliz destino! De nossos olhos comovidos correm rios de lágrimas; nossas faces estão umedecidas pelo pranto. De que terrível poder dispõe Zeus!
Prometeu
Ouvi, somente, quais eram os males humanos, e como, de estúpidos que eram eu os tornei inventivos e engenhosos.
...
Antes de mim, eles viam, mas viam mal; e ouviam, mas não compreendiam.
...
Sem raciocinar, agiam ao acaso até o momento em que eu lhes chamei a atenção para o nascimento e o ocaso dos astros.
Inventei para eles a mais bela ciência, a dos números; formei o sistema do alfabeto, e fixei a memória, a mãe das ciências, a alma da vida.
O Coro
Agiste sem discernimento, e sofres por isso pena incrível
Prometeu
... fiz ver quando reina entre eles o ódio, ou a concórdia e a união.
E conclui Prometeu:
A inteligência nada pode contra a fatalidade
O Coro
E, a fatalidade, quem a dirige?
Prometeu
As três Parcas, e as Fúrias, que nada perdoam.
A tragédia “Prometeu Acorrentado” foi criada em 3 atos.
Só o primeiro é conhecido; o segundo e o terceiro se perderam no tempo. Não sabemos se Zeus o teria perdoado.
O homem, porém, passou a viver os séculos, com a racionalidade e o discernimento recebidos para enfrentar os desafios da vivência própria e da convivência.
[1] “Teogonia”, “Trabalhos e Dias”, Hesíodo, Editora Martin Claret, 2ª Edição, 2014.
[2] Zeus, filho de Crono, o portador da Égide, escudo feito pelo Cronida.
[3] Prefácio, introdução e notas de J.B. Mello e Souza, Coleção Universidade De Bolso, pág.111 e 112.
[4] Prefácio de “Antígona”, as origens das tragédias gregas, por Suzana Holanda Machado Cânovas, doutora em letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Editora Martin Claret, 2014, tradução de Sueli Maria Regino.
[5] Hades – lugar dos mortos.